
Dionísio BAHULE, Filósofo e Crítico de Arte.
Proposição I
«A hostilidade do pensamento ao pensamento se afirma brutalmente desde a génese do javeísta, um dos textos mais antigos da bíblia […] o pecado original do homem foi ter comido frutos da árvore do discernimento do bem e do mal, ou seja, ter ousado pensar, por si mesmo, os valores e as normas supremas do seu comportamento em vez de se contentar em executar as ordens de outro.»
Marcien TOWA, 2015, p. 28
Proposição II
«Vim de qualquer parte/de uma Nação que ainda não existe./Vim e estou aqui!/Não nasci apenas eu/nem tu nem nenhum outro…/ mas Irmão.»
José CRAVEIRINHA, 1980, p. 18
Proposição III
«Eu sou carvão!/E tu acendes-me, patrão/Para te servir eternamente como força motriz/mas eternamente não/Patrão»
José CRAVEIRINHA, 1980, p. 13
Cabrita, António. É das poucas mentes solitárias que a nova escola moçambicana de crítica deve exumar. A parte a geografia da pele; o império deu-nos o tanto das suas. Mas há um reduto de alma que ainda está entre nós. Craveirinha foi também um misto de dois gomos: de preto e branco em uma tensa equação bifurcada de indefinição; aqui — dá-se o começo germinativo; dessa «estrutura carnal do autor38» sobre a facticidade do vivido e da contingência do facto existencial. O panfleto de cariz doutrinário de usurpação do império sobre a colónia demarca a poetografia que se nega a ser apenas o «es- paço de europeidade absoluta para se tornar contaminação relativa de língua39» como categorias de enunciação e de codificação. Afinal
— é dela e, por ela — o horizonte do possível. Heidegger — num condensado e refinado texto: A essência do fundamento apresenta-nos um ser intimamente ligado ao que anos depois Sartre retomara como projecto — a categoria definitório do homem absorvido pelo traumático momento do estar-aí; o dasein. Aliás,
«Atribuir ao estar-aí o ser-no-mundo como constituição funda- mental significa enunciar algo sobre a sua essência (a sua mais peculiar possibilidade interna enquanto estar aí). […] Por conseguinte, o estar-aí não é um ser-no-mundo porque e somente por- que existe facticamente, mas, pelo contrário, pode apenas ser como existente, isto é, como estar-aí, porque a sua constituição essencial reside no ser-no-mundo, S/d: 45 – 7»
Ora, se é no mundo; no estar-aí, na contingência; no acto próprio do desespero convocado pela angústia movida a partir da circunstância que se pensa na essência do homem como negação do cogito cartesiano — é na subjectividade que o fundamento humano procura ser pensado. E a África e, Moçambique em particular pensou-se na rebelião do acesso que se deu pela árvore do fruto proibido. É nele que se esboça o começo da ousadia; da longa marcha para a configuração da independência depois do contrabando antropológico e material. O eu sou — traduz-se na intimidade de um estar alojado no lugar; no tornar-se consciente do problema da negação do outro tomado pela lógica do lucro e da subalternidade. «Eis por que no cerne das lutas dos escravos estava invariavelmente a questão do futuro enquanto horizonte vindouro a ser lançado por conta própria e graças ao qual seria possível se autoproduzir como sujeito livre, res- ponsável perante a si mesmo e perante o mundo, (MBEMBE, 3018, p. 267)». E eis por que o motor do existir, do tornar-se consciente da necessidade do futuro alimentou as profundas equações de Craveirinha e de toda diáspora. Não foi pelo cogito cartesiano, mas pela nova via de pensar o humano movido pela sensibilidade da subjectividade. Parece ser isto que Sartre procurou dizer no Club Maintenant, criado no Libération por Jacques Calmy e Marc Beigbeder. Se para os muros da igreja o essencial é dada por uma categoria superior, para outros; aqueles cuja noção do ser se move a partir da subjectividade; da condição consciente da situação,
«Significa que o homem existe primeiro, se encontra, surge no mundo, e se define em seguida. Se o homem, na concepção do existencialismo, não é definível, é porque ele não é, inicialmente, nada. Ele apenas será alguma coisa posterior, e será aquilo que ele se tornar. Assim, não há natureza humana, pois não há um Deus para concebê-la, SARTRE, 2018, p. 25».
É possivelmente nessa negação de Deus que esboça a luta; a marcha para o inaugural Sol Político para a África. O contexto internacional de rupturas desperta por aqui a edificação de «uma nova geração de insurectos, activa e decidida a lutar nos seus próprios ter- mos, e não nos termos impostos pelo governo colonial». Estavam — como continua Eduardo Mondlane,
«aptos para examinar os três aspectos essências da sua situação: dis- criminação racial e exploração do sistema colonial; fraqueza real do colonizador; e, finalmente, a evolução social do homem em geral, com o contraste entre o surto da luta negra na África e na América e a muda resistência do seu próprio povo. […] Esta nova inspirou um movimento em todas as artes, que teve início nos anos quarenta40 e influenciou poetas, pintores e escritores de todas colónias portuguesas, 1975, p. 129-30».
Esta utopia colectiva que ganhou corpo, amplitude e robustez ao que Severino Ngoenha chamou de momento moçambicano — encontra perfeita definição com Alain Lock com The New Negro — uma publicação de 1925 que lança os dados para o Harlem Renaissance porém, é no New Negro Moviment de Garvey que maior referência dava. O novo negro — aquele que se exuma da coleira enquanto «sig- nificante por excelência da identidade servil, da condição servil, do estado de servidão41» grita e canta os malefícios da anulação antropológica; agarra-se diferencialmente para construir por meio de um acto colectivo o signo libertário dos povos oprimidos e negados por uma igualdade de circunstância humana. É, provavelmente por aqui que se edifica a ideia da africanidade e a luta pela afirmação do povo negro como um costructo da diáspora42. Obviamente, que isto abre-se, com natureza toda de uma enunciação cuidada a um possível contradiscurso.
Com a segunda geração d’ O Africano germina meio reprimi- da a consciência da subjectividade ligada ao cáustico do momento de dominação revelado pela edição bilingue (português e ronga) como motor possível de penetrar tanto para o mineiro na África do Sul como para o interior de Moçambique e em centros urbanos. Constrói-se a primeira elaboração de um vocabulário «à custa da integração antropocultural» de um exercício de cafrealização; um acto celebrado como ruptura e consagração de uma moçambicanidade no acto da enunciação e no modo forçado da criação da palavra nova. No texto Jambul — há uma dupla costura: uma que se segue o caminho de forçar o canónico a permitir a entrada de novas maneiras de construir os significados com a permissão sempre dada pelo contexto-negociação — Na cidade/Jambul está varrer/Jambul está limpar alcatifa/Jambul está carregar baldes de machimba/Jambul está car- regar pedra. Dá-se um Jambul que se personifica em moçambicano de nação pós-colónia dobrando-se insossegável ao trabalho possível para fugir ao decreto dos 15 dias para os improdutivos se retirarem da cidade. A década 80 — traz o cálculo da existência medido neste resultado.
Mas é também um outro caminho — um Jambul que revela a dura flagelação dos chopes que gente menor perpetrado pelos rongas. Eram aqueles — os escolhidos para o trabalho dos baldes de machimba. Há aqui — a metáfora de denúncia insatisfeita: Jambul pisado até lá no fundo. É verdade que, a consciência da colectividade vem também dele. Luís Carlos Patraquim confessa-se,
«Nesse sentido a poesia, mais do que a prosa, num primeiro mo- mento, foi-me muito importante, sobretudo a poesia de José Cra- veirinha, também a de Rui Knopfli, pode parecer contraditório, mas não é, Rui Nogar, João Fonseca Amaral, porque me deu a elaboração poética, a percepção, para além da fruição estética que me dava, deu-me a possibilidade de eu me reconhecer numa realidade onde estava inserido. Quando Fonseca Amaral fala no monhé da fruta do Alto-Maé, quando o Craveirinha diz “venho de uma nação que ainda não existe e estou aqui”, para além dos outros poemas de pro- testo, obviamente que isso fez-me ter a percepção de que afinal eu pertencia àquele quadro, àquelas coisas, naquelas contradições da altura, sobretudo da nação que ainda não existe (LEITE, et al, 2012.
p. 218)».
No Poema do Futuro Cidadão emerge a utopia; a vontade co- lectiva de traduzir uma terra em nação na qualidade total de uma autonomia. Com leis e com cidadão fundamentado na norma geral de um sujeito livre. O congresso da FRELIMO de 1977, dois anos depois de a nação nascer — deu a conhecer o modelo de homem vasculhado no manifesto ideológico socialista e marxista-leninista com profundo empréstimo do rigor de Ujamaa, base do socialismo africano da Tanzânia de Julius Nyerere — em três visões: [1]: construir um homem que se negasse ao capitalismo de cariz explorador na concepção pura da exploração do homem pelo homem; [2]: negar as sociedades tradições e tradicionalistas e, [3]: devolver para a sociedade um homem novo guiado pelas novas luzes de uma racionalidade revolucionária; daí a ideia de matar a tribo para permitir o nascimento da nação pensada num nivelamento cultural possivelmente espelhado na gramática francesa do iluminismo do século XVIII. Deu-se a nação — país que ainda não existe — já existe — agora corroído por uma burguesia elitizada com acesso a escola e com vícios de novos valores. Nesta nação de 1975 — sonha-se; continuamente presente a utopia para um Moçambique onde editaremos os nossos livros/se- mearemos de arroz os nossos campos/sintonizaremos a voz dos nossos emissores/[…]/e armados de martelos e chaves-de-boca/montaremos água canalizada no Xipamanine todo/desviaremos o machimbombo 7 para a Polana/e o machimbombo 2 da Polana para o Alto Maé/[…] Que um enxame de mãos em prece/na orgia fantástica dos augúrios do nhanga/há-de voltar deste exílio/mais moçambicano. Entre o “Poema do futuro cidadão” e “Sia-vuma” há, por um lado — a utopia como sonho para o Grande Sol Político de autonomizar a existência e, por outro — a convocação para pensar um país tomado pelo vício da burguesia; um confessionário laudatório que se persuade continua- mente na obsessão caveira de subverter, rebelar e construir os valores para um Moçambique-Pátria de todos.
Bibliografia
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. Lisboa: Edições 70, 2006.
LARANJEIRA, Pires. De letra em riste — identidade, autonomia e outras questões na literatura de Angola, Cabo-Verde, Moçambique e S.Tomé e Príncipe. Porto: Edições Afrontamento, 1992. MBEMBE, Achile. Crítica da razão negra.N-1 edições, 2018.